Os torcedores do Fluminense de Feira Futebol Clube, time do interior baiano, numa atitude de extrema revolta, atiraram pipocas aos jogadores, quando estes se dirigiram ao vestiário, após o décimo empate do time em doze jogos. Isto se deu em 2008. Talvez o tenham feito por não possuírem nada mais contundente para arremessar aos incompetentes desportistas; ou, quiçá, temeram a fatal represália do efetivo policial, que estava próximo. Em que pese a banalidade do motivo ou da forma, o fato é que estes ilustres populares, sem disto se aperceberem, indicaram uma alternativa para a ação política que, se universalizada, resolveria praticamente todos os problemas que atualmente colocam este pequeno globo azul na eterna iminência de uma hecatombe nuclear.
O fato, em si, é absolutamente insignificante: pipocas e futebol. Mas os fatos são, por natureza, insignificantes, ou melhor: as significações não são factuais. Fatos não querem dizer nada, fatos não dizem nada, fatos não significam; no máximo, são significados. Houve o tempo em que um traçado diferente na asa do pavão representava ao profeta augúrio terrível de grandes tragédias; hoje, no entanto, nem mesmo os gritantes sinais de guerra nos retiram da ilusão da sociedade capitalista como uma grande colônia de férias.
Mas, voltemos às pipocas. Paralisações são sempre muito danosas; passeatas convulsionam um trânsito já caótico e violento por suas próprias forças; o voto de protesto é um deixa-estar que facilita aos que estão na peleja em causa própria. Numa palavra, todas as manifestações práticas do pensamento político têm lá a sua quota de nocividade social intrínseca, apesar das inumeráveis e honrosas justificativas éticas às quais endosso plenamente.
Contudo, uma análise política profunda e circunstanciada nos mostrará que pipocas são armas meta-políticas de eficácia transcendental. Brancas como a pomba, elas são antes instrumentos da paz do que da guerra e, por esta razão, vão além da política. A política, disse Foucault (invertendo uma máxima de Clausewitz), é a continuação da guerra por outros meios. A guerra entre os homens, por sua vez, é um prolongamento tribal da luta do indivíduo contra a morte e pela vida. Paralisações, panfletagens, debates acalorados e coisas do tipo são outras tantas sublimações da guerra, são ações políticas.
O esporte também é uma sublimação da guerra. Através de um ritual formalizado, com regras convencionais e aceitas pelos competidores, chega-se a um resultado final, a uma vitória simbólica que não extermina o adversário. Até aí tudo bem. Mas, neste mundo ao avesso, o esporte simplesmente se tornou mais um campo de batalha. A violência dentro e fora dos estádios, ginásios e circuitos é coisa que dispensa comentários. Mas há mais.
Se o esporte já não substitui a violência, agora é a violência quem se transmuta em esporte. Um dos mais avançados ramos da matemática, nos dias de hoje, se chama, justamente, Teoria dos Jogos. Nela, estudam-se todos os possíveis desdobramentos de decisões em situações de conflito, como no famoso caso do “dilema do prisioneiro”. E não demorou pra que os Estados, sobretudo os líderes dos antigos blocos capitalista e socialista, utilizassem a teoria para tentar antecipar os passos políticos do oponente. Porém, já antes disto (desde sempre, aliás), generais calculavam suas movimentações, ataques e recuos como lances numa partida de xadrez, inclusive determinando de antemão o número de jovens vidas militares a serem sacrificadas nestas estratégias de gabinete.
Eis onde entram as pipocas. Para desagravar este mundo sem conserto, a solução mais indicada é começar pelo mais simples. Diziam os romanos: “rindo, corrigem-se os costumes”. A paz sorri, e quem sabe rir e fazer rir é um pacificador por definição. Do sublime ao ridículo há um só passo, já dizia Molière; na contramão, ouso acrescentar, a distância é a mesma. Pipocas não machucam, não danificam equipamentos públicos, não congestionam o fluxo de pessoas, não sonorizam ruidosamente arredores de escolas e hospitais. Pipocas não deixam mágoas, como palavras injuriosas soltas ao vento no calor da hora. A serenidade imperturbável de quem não abusa de suas razões; de quem calma, mas insistentemente, impõe seus argumentos na forma silenciosa do protesto simbólico, uma tal serenidade, repito, é capaz de quebrar grandes cadeias de violência.
Quem sabe calar está pronto para o diálogo; e é do diálogo que nasce a ação conjunta, essência e fim da Democracia. A violência, ao revés, resulta sempre da incapacidade de ouvir e de falar. Aquele que agride grita com os seus atos. Aquele que grita agride com suas palavras. Que reaprendamos a arte de não levar a sério tudo o que pode ser remediado ou desfeito, bem como a arte de evitar atos irremediáveis. Com Quincas Borba, digamos: ao vencedor, as batatas. E acrescentemos, por conta: ao perdedor, as pipocas.
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